Instrumentos metodológicos

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Sobre os instrumentos metodológicos na concepção democrática de educação1

Madalena Freire2

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I

O educador, no seu ensinar, é movido pelo desejo. Esta busca envolve insatisfação, frustração, esforço no enfrentamento dos limites da realidade para a conquista do prazer: o conhecimento.

Educar, segundo esta concepção, implica permanentemente ser um aprendiz curioso de seu próprio ensinar.

Educador e educando, mediados por sua reflexão, no enfrentamento de seus desejos, tornam-se, assim, construtores do próprio destino. Observar, olhar o outro e a si próprio significa estar atento, buscando o significado dos desejos de ambos. Estar vivo é estar em permanente conflito, produzindo dúvidas, certezas sempre questionáveis. A educação autoritária quando nega a expressão dos próprios desejos do educador e educando desvirtua a expressão da vida.

Para permanecer vivo, educando a paixão do desejo de vida e de morte, é preciso educar o medo e a coragem. Medo e coragem em ousar. Somos sujeitos porque desejamos, sonhamos, imaginamos e criamos na busca permanente da alegria, da esperança, do fortalecimento da liberdade a que todos nós temos direito. Este é o drama de permanecer vivo, aprendendo ensinando, construindo conhecimento, fazendo Educação.

II

Toda concepção de educação coloca em prática uma teoria do conhecimento. Toda concepção de educação tem um fazer, que está no domínio da pedagogia. Toda pedagogia, no seu fazer, pratica um método, uma metodologia com seus instrumentos para conhecer.

O processo de conhecimento requer que os sujeitos interajam, socializem o que pensam, o que sabem, para juntos conhecerem o que antes não sabiam.

Nesta concepção de educação, o processo de conhecer não tem nada a ver com transferência de conhecimentos. No seu ensinar o educador transmite informações e, ao mesmo tempo, transmite-se na sua paixão, na sua criação. Seu desafio está na escuta, na observação, nas intervenções provocativas para que o grupo assuma o seu pensar nas suas divergências e concordâncias, entre iguais. Pois para conhecer, temos que adentrar o terreno do conflito e do confronto, ou seja, há sempre um desafio, um problema a ser superado, iluminado pelo conhecimento.

Os instrumentos metodológicos (a observação, a reflexão da prática/teoria, a avaliação e o planejamento) possibilitam o exercício sistemático da reflexão para a construção e apropriação da disciplina intelectual. O educador estando em qualquer função na escola (professor, coordenador, diretor) é um profissional do conhecimento, um estudioso, um intelectual – seu compromisso está em promover que seus alunos entrem em contato com seu próprio processo de conhecimento. Para isso, a disciplina intelectual é a ferramenta básica. Assim como um pedreiro necessita de ferramenta para levantar uma casa, o educador necessita de instrumentos metodológicos para a construção permanente da disciplina intelectual, para o estudo permanente que alicerça sua autoria e autonomia.

III

Os instrumentos metodológicos são:

  1. a observação
  2. o registro reflexivo sobre a prática/teoria
  3. a avaliação
  4. o planejamento

1 Observação

A observação demanda/envolve a atenção, a escuta na reflexão de quem admira, contempla a realidade.

O ato de observar exige estar por inteiro, encarnado na presença. O ato de estudar começa na observação que demanda atenção, escuta, presença e reflexão. Estar presente, no presente, enquanto presente da vida…, que me exige exposição, para ser visto, por esse olhar do presente.

Simone Weil afirma que toda “atenção deveria ser o único objeto da educação”.

A atenção é um ato de generosidade e abertura para acolher o mundo.

A atividade da observação é o planejamento da avaliação. A observação focada é um ato de metacognição: processo mental, interno, pelo qual o sujeito toma consciência dos diferentes aspectos e movimentos de sua atividade cognitiva. Por meio desse processo, o sujeito toma distância reflexiva, e por isso mesmo é uma atividade do seu processo de aprendizagem.

É um movimento constitutivo para o desenvolvimento da autonomia, por ser um instrumento de regulação, conduzido por aquele que aprende.

É na socialização das observações de cada um, que se opera um diálogo interno, alimentado pela linguagem do outro, favorecendo assim o conhecimento de si.

A observação envolve o ver, o olhar e o enxergar. Podemos ter a visão, mas isto não significa que olhamos, enxergamos…

Olhar, enxergar, vai além do ver. Olhar é mais do que ver; é enxergar, decifrar o sentido, é ler, ir além do visto, além da vista, da visão…

Ao vermos, na visão primeira, de “primeridade” (PIERCE), ficamos nas aparências, na superficialidade, na primeira impressão, colados às situações, sem distanciamento reflexivo. O desafio é conquistar um olhar de “secundidade” (PIERCE), em que superamos as aparências, apuramos uma reflexão, um distanciamento e, por isso mesmo, tecemos uma interpretação, leitura dos sentidos, significados, do que conseguimos enxergar, interpretar. Neste sentido, a ação de observar é sempre diagnóstico-avaliativa.

Este exercício de aprender a olhar, enxergar, exige:

  • concentração: foco
  • escuta: recolhimento
  • silêncio: para poder escutar o externo e comunicar-se internamente, o que exige tranquilidade na intranquilidade. E, para isto, serenidade e paciência.
  • escrita: registro do que escuta, interpreta, pensa e duvida.

A observação exige foco. A observação focada é estudo, reflexão sobre os sentidos e significados. Deste modo, ela é sempre diagnóstica, avaliação da realidade. Os focos são chamados por mim de pontos de observação. Seus focos estão direcionados para os elementos de toda aula, de todo ensinar, que são: a própria aprendizagem do educando, a dinâmica com a qual o grupo constrói a aula e o ensinar do educador (coordenador).

Observar é focar o olhar, a escuta e o próprio silêncio numa ação reflexiva, avaliativa, sobre elementos da prática que se quer pesquisar, estudar. Os focos da observação estão centrados no próprio processo de aprendizagem, na dinâmica do grupo e no ensinar do educador.

O ponto de observação é uma atividade essencialmente avaliativa, mas também é o planejamento da avaliação, a ser desenvolvida no final da aula, quando cada participante socializa o que observou sobre os focos determinados.

O ponto de observação direciona o exercício da auto avaliação, entendida como auto regulação, ou seja, aquela atividade onde o educando tem como desafio refletir sobre seu processo de aprendizagem, buscando um olhar distanciado, crítico sobre o que vive enquanto participa da aula.

A observação, com seus focos, delimita o que queremos pesquisar, refletir, estudar. Por isso mesmo ela traz o germe da avaliação. Ela diagnostica o que cada um e o grupo sabe – zona real do conhecimento – e o que ainda não conhece – zona proximal do conhecimento (VYGOTSKY).

O desafio, portanto, é que o educando seja levado a uma tomada de consciência sobre o seu próprio processo de aprendizagem, podendo assim romper comportamentos estereotipados, viciados, como numa repetição de hábitos, mecanicamente.

Todo processo de tomada de consciência opera num diálogo interno com nós mesmos e, ao mesmo tempo, alimentado pela linguagem dos outros.

Por tudo isso, é fundamental que na avaliação, no final da aula, cada participante posicione-se, socializando sua observação (avaliação) trabalhada durante o decorrer da aula.

São situações distintas aquelas onde o educador faz devoluções para seu educando sobre os desafios a enfrentar em seu processo de aprendizagem, daquela outra onde o próprio educando expõe, assumindo-se diante do grupo, socializando seus desafios e impasses em relação ao seu processo de aprendizagem.

O ponto de observação busca assim que cada educando assuma sua própria aprendizagem, enquanto autores do processo e, por isso mesmo, vá dependendo cada vez menos da regulação externa do educador.

Neste sentido, é uma atividade que alicerça o exercício permanente da construção da autonomia.

2 Registro reflexivo

Pensar é marca humana. Não cessamos de pensar, mas pensar é uma coisa; outra, muito diferente, é refletir.

Refletir é o apuramento do pensar; é lapidar o próprio pensamento.

Nesta concepção, em que se busca uma relação democrática, o pensar é arma de luta, que fundamenta a autoria e a autonomia. Pois pensar é perguntar, duvidar, procurar e criar hipóteses que serão testadas no agir, no fazer do dia a dia.

Pensar e agir compõem a ação pensante, atenta no cotidiano, gestando experiências, mudanças e transformações. É a reflexão sobre a prática que produz a tomada de consciência amorosa, pedagógica e política.

Nesta concepção, o educador é um militante “caminhante” (BENJAMIN) pedagógico, que se mantém atento, na sua presença presente, em vigília reflexiva e estudiosa, da prática e, por sua vez, da teoria que pratica.

O registro (escrito) é arma de luta nesse processo de apurar o próprio pensar. Há vários tipos de registro:

  • no ato
  • após: a) notas imediatas e b) síntese sobre a aula
  • reflexão temática: desenvolvimento de um conteúdo da aula
  • relatório (bimestral, trimestral) sobre o trabalho do grupo e sobre os individuais (cada educando)

O registro reflexivo (síntese) sobre a aula está pautado nos focos que regem toda aula:

  • planejamento das atividades
  • conteúdos trabalhados
  • dinâmica do grupo
  • aprendizagem (educandos)
  • avaliação do próprio ensinar

O registro reflexivo (síntese da aula ou reflexão temática) obriga a focar, priorizar no estudo, numa ação permanente de análises comparativas, a interpretar e fundamentar o próprio pensamento.

É nesse sentido que o registro reflexivo apura o próprio pensamento, gestando assim uma tomada de consciência e, portanto, um rompimento da alienação cotidiana.

Contudo, não basta registrar para si, somente. É vital a comunicação com o outro, o parceiro. A reunião entre iguais, coordenada por um educador (coordenador) é fundamental nesse processo de conscientização.

3 Avaliação

Na ação de avaliar pensa-se o passado e o presente para poder construir o futuro. Nesta concepção de educação, portanto, a avaliação é vivida como processo permanente de reflexão cotidiana.

É neste sentido que o ato de avaliar é processual. Acontece no processo permanente de rever, refletir o passado para reconstruir o futuro no presente.

Aprender a avaliar é aprender a modificar o planejamento. No processo de avaliação contínua, o educador agiliza sua leitura da realidade, podendo assim criar encaminhamentos adequados para o constante ato de recriar o planejamento.

Observando, analisando e planejando seu cotidiano, o educador alicerça sua disciplina intelectual para a apropriação de seu pensamento teórico.

Não há ação educativa que prescinda de diretividade. No nosso ensinar a diretividade é mediada pelo exercício dos instrumentos metodológicos: da observação, da reflexão, da avaliação e do planejamento.

O processo de avaliação inicia-se na observação e por sua vez os focos a serem observados constituem o planejamento da avaliação.

A avaliação retoma os focos do planejamento e estuda o processo vivido, seus impasses e conquistas – que produto foi alcançado. É neste sentido que toda avaliação é processual, acontece a cada aula, constituindo assim o embrião do planejamento da aula seguinte.

A reflexão faz a costura, a sistematização entre estes três movimentos: da observação para a avaliação e desta para o planejamento, e, outra vez, reinicia-se a observação, a avaliação e o próximo planejamento. É neste exercício disciplinado, que conseguimos sintonizar com os significados e faltas do grupo, tendo oportunidades de construir uma aprendizagem significativa, tanto com nossos alunos como com nós mesmos, no nosso ensinar.

Nesta concepção de avaliação, portanto, está implícito que é processual e diagnóstica, muito distinta da visão autoritária, em que ela é autopsia, necropsia,…. pois estão em des-sintonia com o processo vivido…

Nesta concepção a atividade da avaliação acontece em toda aula e é constituída por dois movimentos:

  • o primeiro, que resgata, recupera os conteúdos da disciplina estudados
  • o segundo, que resgata os conteúdos dos sujeitos, segundo o ponto de observação na aprendizagem

Mas também se resgata a avaliação de como o grupo construiu a aula, que entraves, impasses houve na sua dinâmica.

Avalia-se também o ensinar do educador (coordenador), pois todos estão implicados e o educador também se avalia no seu ensinar.

O modelo de um educador que recebe as críticas de seus educandos sobre seu ensinar aprende a ensinar melhor. Um aluno que aprende a ensinar, observando e avaliando um educador que está aberto às críticas também aprende a ser melhor educando e mirar-se num modelo de educador democrático. Toda atividade de avaliação, no final da aula, desemboca no planejamento para a próxima aula. É neste sentido que todo planejamento nasce na avaliação.

4 Planejamento

O planejamento tem seu nascimento na avaliação da aula anterior.

Todo planejamento é uma hipótese, porque antes de entrar em aula, ele está no terreno do sonho, somente na imaginação. É na interação com (o real) os alunos, o grupo, que se inicia a aterrissagem… ou seja, avalia-se, questiona-se sobre o sentido de seguir a hipótese planejada ou se seria necessário remanejamentos, pelos inusitados: por exemplo – muitas ausências, nem todos fizeram a tarefa etc.

É neste sentido que o ideal é entrar em aula com duas hipóteses possíveis de planejamentos… quanto mais nosso olhar é alargado para os inusitados, mais agilidade teremos para re-criar o planejamento. É deste modo que a pré-visão do (sonho) do planejamento vai aterrissando no real, possível a ser seguido, executado. Nesta concepção, o planejamento liberta o voo para a criação e recriação permanente da aula.

Referências

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1 Texto elaborado em 2013 para fins de estudo em reuniões do Comitê Acadêmico do Instituto Superior de Educação Pró-Saber, formado por professores do Curso Normal Superior, com habilitação no magistério da Educação Infantil.
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2Madalena Freire é arte-educadora e pedagoga. Dedica-se desde 1981 à formação de educadores. É coordenadora do Curso Normal Superior do Instituto Superior de Educação Pró-Saber.
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